Receita de bolo

A vida perfeita é uma ficção poderosa. Somos inundados por uma receita de plenitude que, na prática, exige muito mais do que o possível. Viver é escolher, e escolher é, inevitavelmente, falhar em ser completo.

11/28/20254 min read

Hércules na encruzilhada, c.1596 - Annibale Carracci
Hércules na encruzilhada, c.1596 - Annibale Carracci

A receita para uma vida perfeita

Para fazer tudo aquilo que a ciência nos manda, precisaríamos de uns três dias em um. Acorde e durma cedo para respeitar os ritmos circadianos. Faça exercícios por no mínimo quarenta minutos em um horário no qual não atrapalhe no sono e com uma distância ideal das refeições. Passe tempo de qualidade com os filhos, amigos, família que, idealmente, também estarão respeitando seus ritmos circadianos, horários de sono, alimentação e exercício. Leve os pets passear para que não se estressem e façam as necessidades no local certo. Se estiver muito quente na rua evitar os horários de pico do sol (lembrando que não se pode fazer exercício perto do horário de dormir, nem muito longe - e também não muito perto - do horário da refeição). Consuma pelo menos cinco porções variadas de frutas e vegetais por dia, lembrando de equilibrar a quantidade de carboidratos, proteínas e lipídeos. Higienize adequadamente todos estes alimentos, mantendo em mente as condições de armazenamento de cada um deles, bem como a validade. Consuma frutas da estação. Realize o preparo dos alimentos com pouca gordura, lembrando de consumir uma quantidade saudável de azeite de oliva extravirgem. Separe o lixo. Lave todas as embalagens de lixo seco que tenham sujidades. Evite consumir produtos com embalagem não-reciclável. Faça a higiene do sono, fique longe das telas - o tempo de qualidade a ser passado com amigos e família deve ser presencial. Sente-se com a coluna ereta, ombros levemente para trás e pernas a 90 graus. Trabalhe o suficiente para ter a qualquer momento o equivalente a seis salários como reserva de emergência, mais fundos para férias, necessidades básicas, investimentos, aposentadoria e mimos. Não trabalhe demais, pois o estresse faz muito mal. Leia pelo menos um livro por mês (lembre-se da higiene do sono, então nada muito estimulante e cuide da temperatura da luz da sua lâmpada). Use protetor solar, mas não demais, e veja se os ingredientes usados não são tóxicos. Exponha-se a luz solar suficiente para produzir vitamina D em níveis saudáveis, mas não pegue sol no horários de incidência mais forte. Aliás, pegue sol com protetor solar e sem protetor também, ao mesmo tempo, para equilibrar a necessidade de vitamina D sem se arriscar a pegar melanoma e ficar com a pele envelhecida. Faça uma rotina de skincare em ao menos 3 passos, duas vezes ao dia. Atente-se aos ingredientes usados nos produtos, para que não sejam tóxicos. Certifique-se de que não sejam testados em animais, e que sejam produzidos eticamente. Não esqueça que as embalagens têm de ser recicláveis.

Há uns quantos anos atrás, lembro-me do lançamento de um jogo chamado The Sims. Nele, o objetivo era construir e manter uma casa e carreira de uma família ou um personagem solo, enquanto lidava-se com algumas demandas simuladas da vida. Agora já foram aprimorando-se umas quantas edições o jogo, entretanto, admiro a sua capacidade de mostrar para uma verdade inexorável da vida - de que as coisas nunca serão perfeitas. No jogo, o personagem tem demandas como fome, sono e higiene, e mantém-se o bem-estar do personagem alto quando todas essas coisas são mantidas em níveis altos. Para isso, era necessário ter um bom trabalho para comprar os itens que permitiam aumentar rapidamente os níveis desses atributos - de modo que em um dia fosse possível cuidar de tudo.

A pegadinha, entretanto, é que nem com dinheiro infinito era possível manter todas as barrinhas no verde - o que sinalizaria um bem-estar pleno. Para que algo se mantivesse perfeito, alguma outra coisa teria de ser sacrificada.

A capitalização da demanda

Essa problemática é, de maneira rudimentar, a economia psíquica do neurótico. Para que se atenda a algo, outra coisa terá de ser negligenciada. Assim como no paradoxo do queijo suíço - onde quanto mais queijo, menos queijo - ao neurótico, quanto mais vida, menos vida. Explico:

Cada escolha implica numa renúncia. Ou seja, cada vez que se toma um caminho na vida, aquele que se negou transforma-se numa vida que não foi vivida. Acredito que tenha vindo daí a ideia da ficção científica de que aquele com o poder de viajar no tempo não pode mudar nada enquanto visita outra linha temporal, sob risco de morte ou aniquilação do universo - Isso mudou com o multiverso da Marvel, mas isso é propaganda do capitalismo tardio e isso falarei noutro momento.

Dessa forma, a não ser que seja possível efetivamente pegar tanto sol sem protetor para que se absorva a vitamina D enquanto se pega sol com protetor para evitar o melanoma, alguma coisa vai ser deixada para trás. Manter uma vida supostamente perfeita é uma propaganda poderosíssima a quem quer vender algo, pois brinca com uma fantasia muito poderosa aqueles que estão na linguagem - a fantasia de um gozo pleno. Para quem quer vender algo, está aí um prato cheio:

  • Um método novo, que os médicos tentam boicotar porque iria curar seu problema ao invés de te manter em um tratamento caro;

  • Um aplicativo que vai cuidar das tarefas que ocupam seu tempo que seria melhor aproveitado levando o Totó passear;

  • Uma dieta que resgata a dieta humana antes de sermos envenenados pela agricultura moderna, pois é essa que causa inflamação e mal-estar.

Ainda que muitos avanços sejam de fato realizados, poucos problemas são efetivamente curados, pois não há cura para a condição humana que é, essencialmente, faltante.

Viver é desconfortável - e ainda que possamos achar maneiras de atenuar esse desconforto, uma cura total é impossível.

Essas proposições são essenciais à psicanálise, entretanto, não são de autoria dela, e muito menos propriedade intelectual exclusiva daqueles que a praticam. Em retrospecto, entendo que foi no respeito à certeza de que há falhas na vida é que a psicanálise me atraiu (e, depois, ouvindo tantas outras pessoas, vejo que não só a mim).


O Dilema de Hércules -Annibale Carracci (1596)