Palavras que eu nunca vou usar

Em 1976, Raul Seixas lança o emblemático álbum Há Dez Mil Anos Atrás. Relevando as polêmicas em torno da autoria das composições, o disco traz faixas profundas que refletem um período conturbado da sociedade brasileira e mundial. Em Eu Também Vou Reclamar, percebemos pistas sobre o funcionamento da psique moderna — questões que ressoam até os sofrimentos contemporâneos, mostrando como certas inquietações humanas atravessam o tempo.

8/18/20253 min read

Tô trancado aqui no quarto

De pijama porque tem visita estranha na sala
Aí eu pego e passo a vista no jornal
Um piloto rouba um Mig

Gelo em Marte, diz a Viking
Mas no entanto não há galinha em meu quintal

Aqui encontramos, além do manifesto da excentricidade de Raul, a primeira pista daquilo que podemos extrair dessa música. O piloto que rouba um Mig, Viktor Belenko, um desertor da União Soviética ganhou manchetes em 1976 pela extraordinariedade de sua ação. Há de se imaginar que, em plena guerra fria, tal ação foi muito importante para os críticos do mundo bipolar, afinal o que levaria um sujeito a realizar ato tão extremo? O mundo que se divida entre ocidente e oriente e, nessa divisão, ditava as coisas as quais se deveria ler, ver, ouvir, gostar e sentir, precisava de propagandas que guiassem a população na "direção correta": Ame-o ou deixe-o, We want you ou Camaradas do mundo, uni-vos! serviam como guias da direção na qual se deveria seguir.

Ainda que roubar um Mig fugisse de todas essas máximas, não era um fato capaz de encher barriga alguma.

Uma das produções simbólicas da guerra fria, que ainda alimenta o imaginário Hollywoodiano veio na forma dos filmes de James Bond. Supor que há superespiões que tudo podem sob a lei desde que alcancem seu objetivo é uma ideia poderosa, e serve para criar histórias fascinantes que apelavam a algo do imaginário coletivo bastante explosivo: Conhecimento é poder.

Em várias camadas encontramos a verdade nisso. Descobrir o funcionamento mecânico de um caça soviético, as rotinas dos altos oficiais ou os planos de assalto de um grupo rebelde eram informações cuja obtenção era vital para qualquer governo da época, tanto que vidas eram sacrificadas em troca desse conhecimento. Tudo isso era crucial tanto para os Americanos quanto para os Soviéticos, e a promessa era que a população no geral se beneficiaria das tecnologias advindas desses grandes investimentos de guerra. O problema é que essa promessa nunca se concretizou.

Dois problemas se misturam
A verdade do universo
A prestação que vai vencer

Essas grandes promessas de um futuro brilhante, sustentando por tecnologias ainda inimagináveis criou um grande problema lá atrás. E cria um outro, similar, ainda hoje. Se lá atrás havia um medo paralisante do que aconteceria em caso de uma guerra nuclear, hoje nos amedrontamos com a mudança climática, a perda de empregos por sistemas de inteligência artificial e outras ameaças de nosso tempo. Esperamos que, assim como a prometida guerra nuclear que nunca veio, esses problemas também se mostrem menores do que a promessa.

Todavia, ainda há de se bater o ponto e entregar o relatório mesmo os cientistas ainda não tenham encontrado a solução para o aquecimento global, assim como o relógio ponto estava lá esperando ao cidadão que não foi obliterado pelo inverno nuclear, ainda que padecesse esperando por um.

O ponto é que assim como não há uma ruína imediata para todos nós, não há uma solução mágica para todos os problemas. A cada coisa nova que descobrimos, aparecem umas duas ou mais que nem sabíamos que podíamos não saber... Dessa forma, assim como um queijo suíço, quanto mais sabemos, menos sabemos. A promessa de uma descoberta bombástica sobre nosso sofrimento, sobre aquilo que falta é tentadora, porém, pouquíssimo resolutiva. A busca por tal descoberta, entretanto, é algo poderosíssimo.

É perigoso acomodar-se numa resposta quando o que move é a pergunta.

E sendo nuvem passageira
Não me leva nem à beira disso tudo
Que eu quero chegar

E fim de papo!