De ondas e ventiladores

Lidar com o calor faz parte da vida de todos Brasileiros. Mesmo no sul, de onde escrevo, todo verão (e mesmo no inverno) há de se lidar com algumas ondas de calor. Talvez haja aqui algo a ser sentido.

2/24/20253 min read

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O clima constrói a cultura.

Dentre outras coisas, o sol e a chuva, o frio e o calor fazem parte da maneira como as pessoas vão construindo as suas vidas e, por sua vez, como lidam com os problemas. Seguindo na lida do sul, há de se gerenciar o calor sufocante de verão tal qual o frio congelante do inverno - e o chimarrão está presente em ambos estes momentos. A bebida que esquenta no inverno também serve como um potente termorregulador no verão, tornando os dias mais confortáveis em qualquer ocasião. Gosto de pensar que talvez o elemento da introspecção do mate solitário, bem como a companhia do mate compartilhado junto ao outro sejam elementos tão potentes quanto. A imposição do clima, no final das contas, deve ser gerenciada - e as estratégias encontradas para isso fazem parte da maneira como nos relacionamos com o outro.

Alguns (mais do que gostaria de admitir) verões atrás eu havia encontrado um paralelo curioso com as bebidas quentes, mas desta vez do outro lado do mundo. Dostoievski, em Crime e Castigo escreve sobre um calor sufocante no verão de São Petersburgo. Ainda que lá não há chimarrão, há o samovar. O inverno Russo é significativamente mais desafiador que o daqui, mas o verão também pode ser terrível. Naquela história, o calor tomava um papel muito importante na trama: o catalisador de paixões. O calor impelia os personagens lá ao assassínio, ao sexo, aos discursos apaixonados. A febre de Raskólnikov, serve como um elemento importantíssimo da trama - refletindo a atmosfera febril da Rússia Czarista do tempo de Dostoievski. De maneira análoga, a febre sofrida em individualmente catalisa as dores da existência - e o calor do samovar permite que circulem as ideias entre outros sofredores.

Em Noites Brancas, por sua vez, o elemento do verão se apresenta como um período onde as coisas podem acontecer a qualquer hora que seja - elas se movimentam muito mais. A noite serve tanto quanto o dia para o contato com o outro, mas é nestes momentos onde a noite é clara que as paixões circulam e tomam conta.

A linguagem que nomeia os afetos

Nas bandas de cá, Érico Veríssimo utiliza o calor para os mesmos fins. Em O Tempo e o Vento, as partes mais apaixonadas da trama têm em seu prelúdio um calor sufocante e, na sua tentativa de aplacá-lo, ocorrem os atos de amor, luxúria e violência. Além desta, encontramos este mesmo elemento noutra obra importantíssima de Veríssimo - Incidente em Antares. Antes do incidente, a onda de calor sufocava toda a cidade de Antares, tal qual o Jornal do Brasil, em seu protesto, previu que aconteceria com o clima - um sufoco.

Ora, em Incidente em Antares era feita uma crítica ao regime ditatorial sob o qual o Brasil estava sujeito após o golpe de 64. O sufocamento da livre expressão tinha este paralelo com o sufocamento do calor. Um dos remédios possíveis para ambos os sufocos é o mesmo - ventilar. Sendo ideias ou ares, que haja algo para ventilar a dor é essencial aqueles a quem o ar estagnado oprime.

Encontramos aqui a fala.

Que as ideias circulem, assim como o ar, sabemos que é essencial para o bem-estar. Isso é tão verdade que serve até mesmo no oposto - no auge do inverno alemão abrem-se as janelas, para que haja ventilação, mesmo que se sacrifique um pouco do calor de dentro de casa. No inconsciente não funciona de maneira muito diferente, tanto que uma das maneiras mais antigas de se nomear aquele com um sofrimento psicológico muito forte é monomania, ou seja, aquele que tem somente uma ideia que não muda de jeito nenhum.

Num jogo de círculo

O ventilador joga o calor de um lado pro outro, e curiosamente não importa muito a posição ou direção que ele sopra, pelo menos um pouco ele ajuda. Entretanto, ele não destrói o calor, não há uma transmutação alquímica que transforma o ar quente em frio. No final das contas, entretanto, sentimo-nos mais confortáveis. De maneira análoga, os sofrimentos que circulam não vão magicamente transformar-se em coisas boas, mas algo no ato de circularem traz alívio.

A mudança real das coisas que incomodam sempre vem aos poucos, timidamente, até que nem se perceba que mudou. Até lá, ventila-se.