Almas Mortas e a era dos dados: Como relativizamos o sentido da vida?
Lá pelo final do século XX uma mudança muito importante foi sendo percebida no valor da vida humana. Sabíamos já que o valor da pessoa comum girava em torno do que ela produz, e não necessariamente dela própria. Agora, entretanto, o valor pode estar retornando à pessoa, e não ao que ela produz… mas de uma maneira bastante perigosa. Séculos antes das redes sociais, Nikolai Gogol, em sua obra-prima "Almas Mortas", já questionava o valor da existência humana dentro de uma engrenagem social e econômica aparentemente absurda. Lá, era um nome e um registro que valia uma fortuna… e agora? Este artigo se propõe a explorar a relativização do valor humano.
5/9/20255 min read


O valor da vida no século XIX
Gogol e a crítica ao sistema de valor humano
"Almas Mortas", escrito pelo autor russo Nikolai Gogol, gira em torno de Tchítchikov, um homem que viaja pela Rússia comprando "almas mortas" — servos falecidos que ainda constam como vivos nos registros do governo, permitindo sua aquisição como se fossem bens aproveitáveis. A ironia do título e do enredo ressalta o quão impessoal e arbitrário pode ser o valor da vida humana enquanto serve um sistema burocrático e mercantilista.
A reflexão principal gira em torno de questões existenciais: qual o sentido da vida de cada um, seja senhor ou servo? O que resta do indivíduo quando seu valor é reduzido a números ou ativos? Gogol transita entre a comédia e a tragédia justamente por perceber que aquele sistema cria simulacros de importância — há apenas a aparência do valor, não o valor real da existência.
A bem da verdade, as questões relativas à servitude na Russa Czarista tardia estavam em voga no século XIX - sendo exploradas por praticamente todos os grandes escritores da época. Escolho aqui as almas mortas pois elas traduzem algo da individualidade dentro de uma massa, além do existencialismo proposto por outros.
Transpondo para o século XXI: O novo sistema de avaliação humana
Se você não está pagando pelo produto, você é o produto
Na era digital, a forma de avaliar o ser humano mudou. Não basta mais produzir… De fato, há tempos que a capacidade da pessoa se endividar tornou-se tão ou mais importante em comparação com sua capacidade produtiva. O sujeito endividado produz um rastro, de modo que a sua dívida possa ser negociada e renegociada, de modo que cria-se capital, essencialmente, do nada. Nessa esteira, as grandes corporações baseadas em dados encontraram uma grande inspiração de uma fonte quase inesgotável de riquezas.
Nas redes, cada usuário é uma fonte infinita de dados. O valor de cada indivíduo é abstraído: ele não está produzindo algo tangível, nem necessariamente contraindo uma dívida — ele simplesmente "é", e esse ser já é suficiente para ser coletado, processado, vendido, segmentado. O indivíduo se torna tão valioso quanto o número de traços de comportamento que deixa nos sistemas. É o simulacro perfeito. Sua existência, ou aquilo que ele representa digitalmente, já é suficiente para ser apropriada por mecanismos econômicos de grande escala. É claro que você pode optar por apagar seus rastros de uma maneira ou outra - mas na grande escala isso é praticamente irrelevante.
Os servos negociados na Rússia Czarista não cortavam trigo ou tiravam leite na obra de Gogol. Na verdade não faziam mais nada, entretanto, ainda podiam dar lucro aos seus senhores sobreviventes e a mais alguns Da mesma forma, o usuário das redes sociais não está produzindo bens de consumo, mas sim gostos, hábitos, trajetórias, ideologias, medos e sonhos. Isso é extraído mesmo quando você está inativo, apenas "existindo" nos sistemas.
O escopo do valor mudou profundamente. O ser humano foi reduzido a uma matriz de pontos de dados, cada qual com um potencial diferente de rentabilização. Quanto mais específica, engajada, previsível ou surpreendente for sua existência, maior o interesse em sua alma digital.
O jogo do simulacro: nada é real?
Habitamos não apenas o Imaginário das representações, mas um registro Simbólico onde nossa existência é constituída e validada pelo grande Outro virtual. As redes sociais funcionam como espelhos fragmentados onde buscamos, incessantemente, reconhecimento no olhar deste Outro digital difuso. Nossos dados, curtidas e interações tornam-se significantes que circulam no campo social como "almas mortas" — fragmentos de gozo deslocados de nosso ser.
O real Lacaniano, aquilo que escapa a toda simbolização, permanece inacessível neste jogo de máscaras. A angústia contemporânea emerge precisamente deste ponto, a saber, em sua pulsão de morte, na compulsão à repetição. Tal qual na angústia antes dos meios digitais, há algo inalcançável, os próprios algoritmos são essencialmente etéreos enquanto algo de real e manifestam-se somente por seus efeitos. A questão é que não se lida mais com o real da morte ou do sexo, aqueles dos quais já sabemos um pouco, mas sim com algo de muito novo do qual não sabemos quase nada enquanto representação psíquica.
E quando esses movimentos ditam a vida de bilhões, não se pode ignorar.
A solidão dos bons números
O paradoxo da era dos dados é que nunca fomos tão "medidos" e, ainda assim, nunca estivemos tão incertos sobre nosso significado intrínseco. Os rankings, as listas de prioridades algorítmicas, os scores de influenciadores — todos são índices numéricos, e números, por melhor que sejam, não alimentam o sentido existencial.
Há solidão em meio a tanta informação e tanta avaliação. Estamos o tempo todo performando para sermos vistos, avaliados, seguidos. E no centro do palco digital, nosso valor parece flutuar conforme as regras mudam. O que era valioso ontem já pode estar obsoleto amanhã. Dessa forma, mantém-se a alienação do sujeito, que com nada pode contar efetivamente, a não ser que haverá a mesma repetição no dia seguinte. O que ele está absorvendo é um mistério a todos menos aos que dele irão lucrar.
Resgatando a singularidade humana
Se, como nos mostra "Almas Mortas", sistemas burocráticos e econômicos possuem o dom de esvaziar o valor humano, a resposta pode estar no movimento oposto: buscar aquilo que nos torna únicos, irredutíveis aos olhos de qualquer métrica ou algoritmo. Isso não é fácil, mas é possível. Essencialmente, os algoritmos dependem de singularidades agindo de maneira a prever como outras singularidades irão interagir entre si. É importantíssimo buscar esse saber para si, não deixar que as grandes corporações tenham monopólio das individualidades.
Das questões que definiam as almas mortas dos servos em Gogol, a mais proeminente para este nosso assunto é o sujeito enquanto mercadoria negociável. Um terceiro poderia vender a sua alma. Agora ninguém pode adonar-se da alma de alguém de maneira definitiva - ainda que o tentem, há meios de se proteger.
A busca por valor e sentido também nos humaniza e nos diferencia das máquinas e algoritmos. Podemos nunca chegar a uma verdade definitiva sobre o nosso lugar no mundo, mas o próprio questionamento é o que constrói sentido ao longo do caminho. É certo que zero presença online parece quase que impossível - mas há algo de recompensador na tentativa.
E se nunca tivermos certeza do nosso valor?
No fim das contas, a provocação permanece: em um mundo onde o valor da vida é cada vez mais negociável, mutante e relativo, de onde tiramos tanta certeza sobre nosso próprio valor e sentido? Não seria a coragem de perguntar, de duvidar e de buscar — mesmo sem garantia — o que nos diferencia e, em última instância, confere um valor autêntico à nossa existência?
É assombrosa a premissa que Gogol traz quando ele apresenta um mundo onde um nome escrito em um papel valha tanto ou mais que a pessoa viva ali representada. De qualquer forma, é importante lembrar que essas almas de Gogol nunca puderam - nem em vida - defender-se. Algumas poucas (mas boas) coisas mudaram desde então.